A paz dos inocentes

Inocente não é só quem não tem culpa. Também é inocente quem não tem consciência das coisas.

Firmino é inocente por falta de consciência. Mas ele é um cara legal. Gente boa. Como a maioria das pessoas. Igual a todo mundo. Pelo menos até aquele dia, quando uma espécie de revelação cairá sobre ele.

Debruçado na janela do seu apartamento no sexto andar, Firmino observa a movimentação das pessoas na rua e no seu condomínio. As mesmas pessoas, fazendo as mesmas coisas, acompanhadas das mesmas pessoas, ano após ano. A única coisa que parece mudar é que elas vão ficando mais velhas.

Seus pensamentos vão e vêm, embalados por um disco antigo dos Mutantes. Naquele dia, Firmino estava nostálgico. Tocava a música Cidadão da Terra, que dizia:

E a minha vida é toda verdade

E eu não tenho mais idade

E o meu passado é o meu futuro

E meu tempo é o infinito...

De repente, ao prestar atenção na música, um alarme soa em sua mente: “― Será? A minha vida é toda verdade, mesmo?”. Desperto pela conscientização súbita de si mesmo, Firmino começa a fazer um retrospecto de sua vida e se dá conta da série de repetições que ela é. A sua e a de todos que ele conhece.

Depois de um tempo absorto em seus pensamentos, sua mulher o chama para o jantar. Ele sente certo alívio por dar um tempo naquela reflexão, que já estava incomodando. Sentam-se à mesa e ela liga a TV automaticamente. Firmino ia reclamar, pois, já há tempos, boa parte da programação da televisão o deixava irritado, principalmente aos domingos, mas prefere ficar quieto para não criar atrito. E se convence, mais uma vez, de que é tudo a mesma coisa: as mesmas notícias, a mesma programação; ano após ano, repetição após repetição, o que hoje é anunciado como novo já era considerado velho há muito tempo.

Remoendo seus pensamentos, ele passa o tempo mais quieto do que de costume, até a hora de dormir.

No dia seguinte, Firmino acorda diferente, mais quieto ainda. Quase não fala durante o café. Sua mulher estranha e ele explica que seu sono fora agitado naquela noite. Teve um sonho insistente onde alguém ficava apontando as suas falhas pessoais e cobrava sua responsabilidade e providências para se melhorar. Era um sonho inquietante e perturbador. Compreensiva, sua mulher o conforta dizendo que aquilo iria passar logo e tudo ficaria como antes.

A observação deixa Firmino mais inquieto ainda. Como poderia tudo ficar como antes de novo? Ele não consegue imaginar esta possibilidade. Mesmo não tendo a menor ideia do que fosse a nova situação que estava vivendo, sabia que nada mais seria como antes. Não poderia mais se alienar ou fingir que não percebia o que estava percebendo!

Despediram-se e os dois foram para os seus trabalhos, como sempre. No caminho, tudo igual: trânsito, pessoas indo e vindo, stress. Como em todos os outros dias. Chegando ao trabalho, tudo igual lá também.

Menos Firmino. Seus colegas notam a diferença no seu comportamento e, para despistar, diz a eles que acordou indisposto. A preocupação dos colegas acaba logo e eles passam a agir normalmente, como sempre. A única diferença é que, desta vez, Firmino não participa das conversas e brincadeiras. Ele passa a maior parte do tempo observando seus colegas como se estivesse por trás de si mesmo, escondido, tentando descobrir como eles realmente são sem seus disfarces sociais. E constata o vazio existente naquelas relações e a superficialidade no que conversam. E, em consequência, no que pensam.

Ao final do dia, chegando em casa, Firmino vai direto até o banheiro e se olha no espelho para ver se há algo errado com a sua aparência. Meio desapontado, constata que continua o mesmo, como sempre. Nota apenas algumas rugas a mais, que não havia percebido antes por não costumar se olhar no espelho com atenção. E conclui que, se algo mudou, foi dentro dele mesmo. Não adiantava procurar fora. E lembra a música dos Mutantes: “A minha vida é toda verdade...”.

― Não é, mesmo! A minha vida é uma grande mentira... ― Fala mirando-se no espelho e conclui com pesar: ― E o meu tempo não é o infinito...

Desorientado, vai para a sala e se atira no sofá para descansar e tentar colocar os pensamentos em ordem. Um tempo depois, ouve alguém o chamando.

― Ei, Firmino...

Ele estranha, pois não poderia haver alguém ali, dentro da sua casa. E ouve de novo a mesma voz.

― Não se assuste... Não adianta me procurar. Você não vai conseguir me ver.

― Quem... quem é você? Onde você está? ― A preocupação e o medo de Firmino vão aumentando.

― Eu estou dentro de você. Sou sua consciência. Não tenha medo, pois sou sua amiga e só quero ajudá-lo.

― Minha consciência? ― Falou apenas para ganhar tempo e tentar entender o que estava acontecendo. ― E só agora você resolveu aparecer? Onde você andava até hoje?

― Eu sempre estive com você, mas em estado de dormência. Você nunca deixou que eu acordasse. Agora que você está se libertando da programação mental que a sociedade sempre usou para controlá-lo, eu despertei e vou acompanhá-lo todos os dias, até o fim da sua vida.

― Puxa, que legal! Agora vou ter uma companhia que realmente me entende?

― Não se esqueça que eu sou você mesmo. Não sou outro ser. Sou apenas uma manifestação mais inteligente de você mesmo.

― Está me chamando de burro?

― Claro que não! Afinal, eu também sou você. Mas vamos parar de chiliques. Nós temos uma missão muito séria para dar conta: a nossa própria evolução como ser humano.

― É estranho eu tratar a mim mesmo como “nós”. É maluquice, mas, se é assim que tem que ser, que assim seja. Como vai funcionar a nossa “sociedade”?

― Bem, eu vou apenas acompanhá-lo e alertá-lo sobre tudo o que acontecer na sua vida para ajudá-lo a tomar as decisões mais acertadas.

― Espere um pouco! Eu não gostaria de ter um grilo falante do meu lado me azucrinando o tempo todo. Já pensou se um dia eu mandar você calar a boca no meio de um monte de gente? Vão achar que eu sou louco! Se é que eu já não enlouqueci! Eu estou até discutindo comigo mesmo...

― Acalme-se! Você apenas está passando por uma situação nova. Daqui a pouco você se acostuma. E eu não vou ficar conversando com você. Isso só está acontecendo agora para eu poder me expressar. Eu vou ficar na retaguarda, só monitorando a situação e assoprando no seu ouvido. Você só precisa dar atenção ao que eu disser. Você nem vai perceber que sou eu que estarei fazendo isso. Vai pensar que é você mesmo. É capaz até de se achar bem esperto...

― Não gostei da gozação...

― Desculpe! Não resisti.

― Está bem. Mas, por que isso agora?

― Porque você se dispôs a evoluir. Até hoje, você era inocente. Um inocente útil. Útil ao sistema vigente. E sabe o que é uma multidão de inocentes úteis? Massa de manobra. E agora, chegou a sua hora de sair desta multidão. Mas não se iluda: isso não vai lhe trazer paz. Muito pelo contrário. Você vai precisar lutar muito, principalmente contra seu maior inimigo: você mesmo! Bem, está na minha hora... Fui! Tchau.

― Ei! Volte aqui... Preciso de mais explicações...

Não houve resposta. E na angústia da situação, Firmino desperta e se dá conta de que aquilo fora um sonho. Ou algo parecido...

Será? Ele se senta assustado no sofá, olha para os lados e analisa a situação. Teme estar enlouquecendo. Mas logo se conscientiza que não. Ou espera que não! Conclui que apenas está percebendo coisas que geralmente ficam escondidas sob as aparências ou sob as convenções sociais.

E assim, ele começaria a agir de maneira diferente de todo mundo, ou seja, fora dos padrões. Porém, para a sociedade, os que agem fora dos padrões são os loucos. Será que a sociedade passaria a considerá-lo louco? Precisaria se preocupar com isso?

― “Ora, dane-se a sociedade! Dane-se o mundo! Não devo nada a ninguém e nada vai me impedir de ser eu mesmo! Ainda mais se for por motivos fúteis ou convenções sociais.”. ― Pensa Firmino, que se surpreende com a própria determinação.

― Ei, Consciência, é você quem está aí me assoprando coisas?

Firmino aguarda alguns instantes e nada. Nenhuma resposta. Mas não importa. Ele não tem mais como voltar atrás, mesmo. É uma viagem sem volta. Depois de se adquirir consciência de algo, é impossível se iludir ou fingir outra realidade. Este é o preço do conhecimento.

Porém, Firmino não está sozinho no mundo. Ele tem a sua mulher e quer que ela o acompanhe nesta sua nova jornada. Ele não pode mudar e ela continuar do mesmo jeito. Seria uma sentença contra a união dos dois, pois ele avançaria no seu novo caminho e ela iria ficando cada vez mais para trás. E ele não quer isso.

O que fazer, então? Simples: contar a ela o que está acontecendo e convidá-la a acompanhá-lo no seu despertar consciencial. Para isso, Firmino terá que se esforçar para demonstrar a ela, pelo próprio exemplo, que está avançando. Só discurso não adiantaria nada.

Então, Firmino resolve preparar uma surpresa. Ela ainda demoraria mais uma hora para chegar em casa. Era tempo suficiente. Ela sempre chega naquele mesmo horário. Sempre igual! Firmino sente um tremor no corpo ao pensar isso. Mas pondera:

― “Não se preocupe, minha querida. Eu vou salvar você!”

Decidido a quebrar a rotina, Firmino pensa em buscar um jantar especial. Mas é segunda-feira! E daí? A partir de agora deixaria de perguntar “por que?” antes de fazer algo e passaria a perguntar “por que não?”.

Ele vai até um restaurante próximo e escolhe os pratos que ele e ela mais gostam e uma garrafa de um bom vinho. No caminho de volta, ao passar por uma floricultura, compra um buquê de flores. Depois de tudo arrumado em casa, uma preocupação passa pela sua cabeça:

― “Será que ela não vai pensar que eu ando aprontando alguma por aí? Mulher é tão desconfiada... Terei que tomar alguns cuidados para não estragar meus planos. Não posso submetê-la a pressões desnecessárias. Afinal, se está acontecendo um despertar para uma nova realidade, para novas percepções, isso está acontecendo dentro de mim. Se quero que ela me acompanhe, preciso convencê-la com leveza, com afeto, com amor.”.

E então, decide que, para não assustá-la, por enquanto ele seria o mesmo de sempre. Mas de forma diferente.

Agora, Firmino já havia deixado de ser inocente.