A criação dos mundos

A criação dos mundos

 

Havia uma empresa magnífica, a maior entre todas as que poderiam existir, tocando um projeto descomunal, o maior entre todos os que poderiam haver. Por um dos seus imensos corredores, andavam apressados o Executivo-chefe seguido por alguns dos seus assessores. No contexto desta empresa em especial, em função do seu tamanho, “alguns” já formava uma grande multidão.

Eles se encaminhavam para um evento pouco comum: uma reunião extraordinária do Conselho Geral Supremo, que serviria para analisar os rumos da Companhia e do seu principal trabalho: o Projeto Universo.

Logo chegaram a uma porta onde um funcionário que os aguardava se dirigiu, cheio de reverência, diretamente ao Executivo-chefe:

─ Ó Deus! Estão todos aguardando. Por favor, entre.

E Deus entrou no recinto com sua multidão de assessores. Entre eles, havia um que se destacava entre os demais. Era um senhor muito sábio. Sua sabedoria, adquirida com a idade, a inteligência e todas as outras qualidades que possuía, capacitou-o a ocupar o respeitabilíssimo cargo de Conselheiro Divino da empresa. E, de fato, seus conselhos já haviam evitado que Deus entrasse em confusões complicadas. Deus sempre o mantinha a seu lado e o ouvia com atenção.

 O local era um grande, imenso, inacreditável auditório, repleto de funcionários do mais alto nível. Ali estavam milhões de gerentes e diretores das mais diversas áreas para discutir questões relacionadas à manutenção do Universo.

Olhando por alto, pode dar a impressão de um grande cabide de empregos. Afinal, milhões de diretores e gerentes parece algo inconcebível. Mas se observarmos o tamanho do universo, até pode ser pouco. Afinal, estima-se que existam no universo 200 bilhões de galáxias e, em cada uma delas, 200 bilhões de estrelas com uma quantidade variável de planetas girando em torno de cada uma delas.

Seriam, então, em torno de 40 trilhões de bilhões de estrelas. Daí, já dá para pensar que alguns milhões de gerentes e diretores é pouco para administrar tudo isso. Mas eles eram muito competentes, mesmo. Todos nomeados diretamente por Deus em cada um dos postos que ocupavam. E ali não havia qualquer possibilidade de maracutaia. Tudo tinha que funcionar perfeitamente.

Acomodado em seu Trono Divino, Deus observou por alguns momentos aquela espetacular multidão de funcionários, todos muito responsáveis, comprometidos com a empresa e seus resultados e competentes nas suas áreas.

E Deus viu que era bom.

Em seguida, deu início à reunião:

─ Amados meus! Aqui estamos mais uma vez para discutir e traçar nossos planos e estratégias para o nosso grande Projeto Universo. Em primeiro lugar, preciso colocá-los a par de como tudo aconteceu. Nomeei uma comissão para analisar todos os acontecimentos e a conclusão foi a seguinte: a criação do Universo foi um acidente!

─ Ohhhhhh... ─ fez-se um coro envolvendo todos os presentes.

─ Sim. O que aconteceu foi que nossos cientistas estavam tentando criar um processo que pudesse reduzir os espaços necessários para o armazenamento dos átomos, os quais, afinal de contas, são a nossa matéria prima. Eles estavam indo bem. Todos os átomos que hoje estão espalhados no espaço sob a forma de matéria formando o universo estavam concentrados, contidos, num espaço muito pequeno. Mas os cientistas não se satisfizeram e acabaram se empolgando demais. Comprimiram tanto a matéria que não foi mais possível contê-la. E então aconteceu aquele grande espetáculo!!! Tudo explodindo, pegando fogo, a matéria se expandindo a uma velocidade absurda. Realmente, uma coisa inimaginável, inacreditável.

A multidão que lotava o imenso auditório entrou em êxtase. Gritos, aplausos, todos entusiasmados relembrando aqueles momentos. Tudo estava muito vivo na memória deles. Afinal, só havia se passado 5 bilhões de anos terráqueos, o que não é nada para a dimensão onde eles vivem. Deus também estava eufórico, comemorando, agitando os braços abertos. Mal conseguia se manter sentado em seu Trono Divino.

Foi quando o Conselheiro Divino lhe deu uma discreta cotovelada abaixo das costelas para que assumisse uma atitude mais condizente com a situação. E Deus se recompôs. Quando os ânimos acalmaram, Deus retomou a palavra.

─ Mesmo tendo sido um acidente, este projeto se tornou o meu maior orgulho e a minha maior realização. Até hoje falam disso com grande pompa. Dizem: “No início era o caos.”. E, em seguida, narram como fui ajeitando as coisas até chegar à situação atual. É claro que eu não teria conseguido sem a participação de cada um de vocês. Agradeço de todo o coração a dedicação de cada um para que não perdêssemos nossos preciosos átomos. Seria um prejuízo incalculável. Geraria uma crise institucional com os acionistas e abalaria nossa credibilidade no mercado. Mas conseguimos evitar tudo isso com a criação e manutenção das galáxias, dos sistemas estelares onde estão organizados os planetas, dos diversos mundos nos quais nós colocamos seres vivos para que os povoassem. Acabamos usando o universo que se criou como uma grande escola, para onde pudemos enviar muitos que precisavam ter experiências diferentes.

Neste ponto, Deus lançou um olhar inquisitivo à plateia antes de continuar

─ Porém, tenho recebido relatos de que algumas coisas não estão acontecendo como deveriam. O pessoal do Marketing insiste que devemos mudar o nome da empresa, como já fizemos um dia: mudamos de “Big Bang Ltda.” para Companhia Universal S/A. Até aí, tudo bem, pois as explosões já haviam acabado mesmo. Agora estão querendo mudar para “Companhia Universal de Deus” querendo aproveitar uma onda de popularidade da minha pessoa. Particularmente, não acho legal se aproveitar do mercado desta forma. Eu proíbo absolutamente. E condeno quem quiser fazer isso a passar o resto da eternidade no Inferno. Nem que, para isso, eu tenha que criar um inferno...

Deus aguardou que alguém falasse algo sobre o assunto, mas ninguém quis falar nada. Principalmente, o pessoal do marketing, pois a ideia tinha sido de um estagiário de lá que não teve a supervisão dos seus superiores. Apesar de não fazerem a menor ideia do que pudesse ser o inferno, deduziram que, pelo tom ameaçador da fala de Deus, não seria uma coisa boa para passar o resto da eternidade.

─ Bem, se todos estão de acordo, vamos prosseguir.

Havia um silêncio total no ambiente.

─ Como já havia relatado há pouco, não tivemos perda de átomos, já que eles puderam ser organizados no formato que atualmente se encontram no universo. Mas ainda temos problemas. Apesar dos nossos átomos estarem no universo em forma de matéria concentrada, nós não temos como utilizá-los desta forma. Até já providenciamos diversos buracos negros no sistema de galáxias para absorver matéria e suprir nossas necessidades imediatas. Mas, diante da expectativa de expansão do nosso mercado, precisaremos de maior disponibilidade de átomos.

Fez-se silêncio e apreensão entre os presentes, todos à espera de algo muito grave.

─ Senhores, diante deste quadro, depois de muitos estudos, simulações e análises de alternativas, dos quais participei pessoalmente com toda a Equipe Técnica de Operação e Controle dos Fluxos Energéticos Intra e Supra Atômicos, chegamos à conclusão de que não poderemos esperar pelo processo dos buracos negros. Seria muito demorado. Nós teremos que reabsorver todo o Universo com urgência. Agora! Já!

Ninguém esperava por tal novidade. Todos ali estavam acostumados a trabalhar sob pressão. A manutenção do universo exigia intervenção direta constante. Galáxias estão o tempo todo se perdendo do seu eixo de movimento e se chocando com outras. Estrelas explodem, morrem ou viram anãs. Nuvens de gases se aglomeram e formam novas galáxias.

Isso sem falar nos seres vivos. Eles passam o tempo todo mudando a si mesmos e os ambientes onde habitam. Uns se extinguem e dão lugar a outras espécies em todos os cantos do universo. Dá uma trabalheira danada tomar conta de tudo isso. Haja mão de obra para organizar o caos que se cria o tempo todo...

Mas reabsorver os átomos do universo de forma tão rápida era algo que nunca ninguém havia cogitado. Seria trabalhoso demais, demandaria um planejamento imenso, precisaria de uma infraestrutura jamais imaginada.

E os custos? Será que haviam calculado os custos da operação? Valeria a pena todo o investimento em função da cotação do átomo na Bolsa de Valores Celestial? A relação custo/benefício era favorável? E o que Deus quis dizer com “agora” e “já”? Eles não poderiam deixar aquela reunião e sair executando, assim, de qualquer jeito, as determinações de Deus.

Todas estas indagações, e muitas outras, passavam pelas mentes daqueles abnegados trabalhadores universais. A notícia de Deus naquele momento caiu como uma bomba sobre todos. Caras fechadas pela preocupação, murmúrios, gestos quase desesperados. De tudo se via entre a plateia.

Mas não foi à toa que Ele havia sido escolhido para ocupar o cargo de Deus. Como era onisciente, onipotente e onipresente, percebeu imediatamente a inquietação geral e, amorosamente, procurou acalmar a todos.

─ Calma, meus irmãos! Calma, por favor! Vocês terão tempo para planejar e montar toda a operação e executar tudo com tranquilidade. Bem, na verdade, não terão tanta tranquilidade assim, mas o suficiente para não termos problemas. A pressão não será diferente da que vocês já estão acostumados. Assim, marco uma nova reunião para daqui a quatro dias para nos encontrarmos neste auditório novamente para iniciarmos a operação. OK? Até lá, todos terão tempo suficiente para fazerem contato entre si e elaborar os planos necessários.

Um imenso sentimento de alívio tomou conta de todos, pois eles teriam quatro dias (deles) para preparar tudo. Um dia deles corresponde mais ou menos a 1 bilhão de anos terráqueos. Isso quer dizer que não precisamos nos preocupar. Não estaremos mais aqui, mesmo...

─ Meus amados, meus queridos, ide em paz! ─ Isso faz parte do marketing pessoal de Deus para despertar a empatia de todos e fazer com que se sintam mais próximos da divindade. ─ Ide para casa e descansai. Amanhã será mais um dia cheio de trabalho e precisamos estar em condições de suportá-lo. Não sei quanto a vocês, mas eu estou louco para ter uma boa e revigorante noite de sono. Até a próxima, pessoal.

A reunião se desfez tranquilamente e cada um foi tratar da sua vida. Inclusive Deus.

Chegando em casa, depois de entrar, respirou fundo e soltou um suspiro de alívio. Não via a hora de tirar os sapatos, sentar na sua Poltrona Divina e colocar as pernas para cima. E foi o que fez. Mas foi só relaxar a cabeça no encosto da poltrona, chegou sua esposa, que vinha do interior da casa. E, pela sua fisionomia, Deus percebeu que algo não estava bem.

Ela já chegou perguntando:

─ Está cansado, é? Teve muito trabalho hoje?

Mesmo sem saber o que estava acontecendo, Deus respondeu normalmente só para ganhar tempo para tentar descobrir o que havia. Nestes casos, nem Deus, com toda sua onisciência, consegue saber o que passa pela cabeça de uma mulher.

─ Sim, foi um dia puxado. Estive envolvido quase o tempo todo com os problemas do universo...

─ Imagino que sim. ─ Interrompeu ela. ─ E enquanto você estava planejando, teorizando, mandando os outros fazerem, eu e o pessoal do Departamento de Manutenção da Ordem Universal estávamos botando a mão na massa para arrumar toda a esculhambação causada pelas explosões. Era poeira, fuligem, material incandescente e todo tipo de porcaria para todo lado. Se não fosse por nós, nenhum de vocês poderia olhar e se maravilhar com a beleza do universo. Estaria tudo um lixo. Nem vida seria possível existir naquele caos.

─ Todos nós reconhecemos a importância do trabalho de vocês. Vocês estão de parabéns. Aliás, este departamento foi criado por Mim, e foi exatamente para isso que Eu o criei. Mas, querida, você sabe, eu tenho que conduzir tudo na Companhia Universal. Eu tenho que coordenar os trabalhos pessoalmente. Se não for assim a coisa não funciona. Se eu não determinar o que deve ser feito, cada um vai fazer o que lhe vier à cabeça e nada vai funcionar.

─ Sim, isso eu sei. Mas eu também trabalhei o dia todo. E o meu trabalho é muito mais desgastante que o seu. Mas, quando cheguei em casa, ainda tinha um monte de coisas esperando minhas providências. E o que eu estou fazendo? Estou tentando dar conta da nossa casa. E você faz o quê? Chega em casa e se aplasta na sua Poltrona Divina esperando que tudo aconteça como num passe de mágica...

─ Mas, amor, eu só estou descansando um pouco. Em seguida eu posso ajudar você.

─ Ah, bom! Em seguida! E eu fico esperando que você se disponha?

─ Você só precisa esperar que eu descanse um pouco. Aproveite para descansar comigo, já que seu dia também foi cansativo.

Ela fica olhando para Deus por alguns instantes, pensativa, sem saber o que dizer, até que se decide:

─ Eu sabia que isso ia acontecer quando você aceitou o cargo de Deus na empresa. Só você não sabia que ia ter que se dedicar muito mais a esta função do que à sua própria vida. Mas eu cansei. Peço demissão do Departamento de Manutenção da Ordem Universal e vou passar uns dias na casa de meus pais. Volto quando estiver mais relaxada.

Ela estalou os dedos e surgiu à sua frente três malas já prontas com tudo o que precisava para passar os próximos dias na casa dos pais. Saiu caminhando em direção à porta e, com mais um estalar de dedos, as malas começaram a acompanhá-la pelo ar.

Deus ficou admirando a cena e pensou:

─ Se ela pode fazer isso com as malas, por que não fez o mesmo com as coisas que tinha para fazer em casa? Em vez disso, ficou me atazanando. Vou viver uma eternidade e não vou conseguir entender tudo!

Então, Deus se viu sozinho em sua casa.

E Deus viu que não era bom.

Mas concordava que ela precisava de uns dias de descanso, pois andava muito estressada. Esta pausa iria lhe fazer bem. Quando voltasse iria tentar convencê-la a assumir o cargo novamente.

E, como a situação que se criou era aquela mesma e não havia nada que Ele pudesse fazer, resolveu que iria aproveitar os próximos dias para se dedicar ao máximo ao projeto de reabsorção dos átomos do universo.

Deus ficou descansando por mais algum tempo, até que sua barriga roncou. Foi até a geladeira e catou algo que havia sobrado do jantar do dia anterior, adicionou mais algumas coisas que encontrou, arrumou num prato e fez uma bela gororoba. Esquentou tudo e começou a comer, pois a fome era grande.

E Deus viu que era bom!

Depois de saciada a fome, pensou em assistir um pouco de TV antes de dormir, mas desistiu.

─ “Agora é a hora do telejornal. Como onisciente que sou, já sei tudo o que aconteceu e será noticiado. Então é perda de tempo. Melhor ir descansar”.

Então, Deus tomou um banho relaxante, vestiu seu pijama e foi para cama. Antes de dormir, como sempre, fez a sua oração:

 

Pai de vocês, que sou eu,

Santificado é o meu nome.

Envio a vocês o meu reino e

Espero que o aceitem de coração.

Será feita a minha vontade,

Assim na Terra como em todos os outros mundos.

O pão de vocês de cada dia, darei hoje

A todos que o buscarem.

Perdoarei as vossas ofensas da mesma forma

Como vocês perdoam aqueles que os ofendem.

Alertarei a todos para que não caiam em tentação,

Mas não posso impedir quem não quiser resistir.

Também alertarei sobre o mal,

Mas não poderei livrar quem

Fizer sua escolha por ele.

 

E, ao término da oração, como sempre, Deus se dirige ao universo inteiro e, apontando com o dedo indicador, proclama:

─ Mas atenção vocês todos: fiquem espertos... Eu não vou passar a mão na cabeça de ninguém. E não abusem da minha paciência. Na hora que Eu encher, tiro as regalias que vocês têm. Daí quero ver o que vão fazer.

E Deus relaxou e viu que era bom.

─ Ahhh... Boa noite, mundos.