Mi sento persa

Passando um tempo na cidade de Cagliari (a pronúncia em português é como “Cáliari”), na Itália, notei que lá também existe o costume de se pichar muros e paredes. Mas em número menor do que no Brasil. E, às vezes, os motivos também são diferentes.

Assim como no Brasil, e provavelmente no resto do mundo, a grande maioria das pichações parecem ser motivadas por disputas entre grupos que reivindicam uma área. A pichação do símbolo de um grupo ou dos nomes de seus membros em um local significa que aquela área é “dominada”, “controlada”, “possuída”, por aquele grupo. Bem, é assim que parece funcionar na cabeça deles... Ou significa apenas uma demonstração de coragem ou de audácia de alguém, como se estivesse competindo com outros para ver quem é o mais isso ou aquilo.

Na Itália, ou em Cagliari, pelo menos, além deste tipo de pichação, é comum se encontrar mensagens com conteúdo político, posições ideológicas e protestos contra alguma personalidade ou contra algo. Ou apenas ideias. Estes são temas frequentes das pichações por lá. Mas não é por isso que são necessariamente educadas. Bem pelo contrário. Podem ir do deboche à ofensa com muita facilidade. E também usam palavrões à vontade.

Os protestos são contra personalidades de todo tipo, chamando-as principalmente de fascistas (essa é uma das maiores ofensas que pode existir na Itália), críticas a órgãos públicos diversos, à polícia, ao judiciário, e por aí vai. Boa parte do se lê nos muros é que a prisão de uma determinada pessoa foi um ato de autoritarismo, perseguição ou fascismo (olha o termo de novo!), exigindo a sua liberdade.

Mas houve uma exceção que me marcou muito.

Eu estava num ônibus indo para o centro da cidade (lá o transporte público funciona muito bem). Viajava em pé, observando pelas amplas janelas as belas paisagens da cidade, onde se alternavam construções de vários séculos, verdadeiras relíquias, com prédios modernos. Então o ônibus parou e vi em um muro bem à minha frente que alguém havia escrito uma frase. Ela me despertou a curiosidade e passei a tentar traduzi-la. Começava assim:

Mi sento persa,

Como iniciante no idioma italiano, comecei a pensar: “sento” é a primeira pessoa do presente do verbo “sentir”. Mas também pode ter o significado de “ouvir”. “Persa”, eu havia associado a uma notícia que havia lido ou ouvido há poucos dias sobre algo que estava “perso” (perdido).

Então, se “perso” era perdido (masculino), “persa” era perdida (feminino). Então, “mi sento persa” poderia significar “eu me sinto perdida”. Não poderia ser “eu me ouço perdida”. Sim, a primeira opção é mais cabível: “eu me sinto perdida”.

Tentando prosseguir na minha tentativa de tradução do resto da frase, o ônibus arrancou. Ele foi mais rápido que eu. Nem sei se consegui ler mais alguma coisa. Se li, nada ficou registrado. Lembro apenas do início da frase, daquelas três palavras:

Mi sento persa,

Que mensagem seria aquela? O que quis dizer a mulher que a escreveu? Ou seria uma menina? Uma adolescente? Ou, até, alguém que apenas se sentisse como uma mulher? Impossível saber. E por que estaria ela se sentindo perdida? Era um sentimento real ou era apenas sentido figurado? Era físico ou metafísico? Era algo ou não era nada?

Mi sento persa, ...

E o restante da frase? Estaria ali a explicação do mistério? Seria um desabafo? Ou uma confissão? Ou um insuportável, insuperável, drama adolescente? Ou o relato de uma dor genuína? Talvez fosse apenas um trecho de um romance qualquer. Ou de um poema. Ou um provérbio. Ou um ditado popular.

Como saber agora? O ônibus havia me levado dali, para longe do muro, só me deixando com estas palavras gravadas na mente:

Mi sento persa, ...

Enigmáticas. Provocantes. Misteriosas. Incompreensíveis. Profundas. Tre piccole parole. Três pequenas palavras. Mas tão cheias, tão representativas, tão expressivas, com tantas possibilidades...

Três palavras, e mais as reticências que provavelmente nunca serão substituídas. Não sei se um dia voltarei a Cagliari. E, se voltar, é improvável que a frase ainda esteja lá me esperando. Acho que jamais descobrirei as palavras que estavam naquele muro para completar a frase. Permanecerá a curiosidade, a vontade de entender o que a pessoa que escreveu naquele muro quis dizer. Talvez, justamente, por eu não saber o sentido completo da frase. Restará o mistério, a especulação, a tentativa de encontrar ou de encaixar uma resposta.

Mi sento persa, ...

Mas, afinal, que importância tem isso? Pode ser apenas uma grande bobagem que alguém escreveu num muro por falta do que fazer! Por que eu deveria queimar meus neurônios com isso? Por que me preocupar com algo que nem me diz respeito?

Non so. Forse mi sento anche perso. (Não sei. Talvez eu também me sinta perdido.)

 

 

Fim do mistério:

A curiosidade acabou fazendo com que eu empreendesse uma muito improvável tentativa de achar a frase pintada no muro novamente.

Com o Google Maps, refiz o caminho daquele ônibus e, na Via Is Maglias número 126, para minha grande surpresa, encontrei a frase inteira escrita naquele muro:

Mi sento persa ogni volta che guardo il tuo sorriso”

“Sinto-me perdida toda vez que olho para o teu sorriso”

Que coisa mais sem graça... Agora, com a mensagem completa, perdeu-se o encanto.

Bem feito para mim. Quem mandou eu procurar? Se eu tivesse me contentado apenas com o início da frase, ela seria sempre uma fantasia alimentando a imaginação na tentativa de dar-lhe um sentido.

Bem, pelo menos tive este pequeno prazer durante dois meses. Foi bom.