Lendo a sorte

Anualmente acontece uma feira esotérica na cidade. Já aconteceram tantas, que o evento se tornou uma tradição, atraindo muita gente e a cada ano ficando maior. Ali se pode encontrar todo tipo de coisas místicas, mantras, incensos, rezas, pedras, raízes, curandeiras, diferentes expressões de correntes religiosas e filosóficas, e por aí afora.

Tudo é muito bem organizado. Acontece num local amplo onde cada interessado em expor seus produtos, serviços ou ideias aluga um espaço e ali monta a estrutura que precisa para poder desenvolver a sua atividade. E lá fica à espera dos clientes.

Em um dos corredores mais movimentados, duas “ciganas” alugaram seus espaços e montaram suas tendas. Por coincidência, ou por descuido da organização do evento, elas acabaram ficando uma ao lado da outra.

Elas garantem ver o passado e o presente e prever o futuro de qualquer um que queira se consultar. Mas, as más línguas locais comentam que nenhuma das duas é cigana. Alguns dizem que as conhecem há anos, que moram na cidade e nunca viram qualquer uma delas envolvida com o povo cigano ou algo parecido. Há quem diga que, com aquela encenação, elas estão enganando as pessoas. Mas, por outro lado, quase ninguém sabe dizer se elas realmente são capazes ou não de fazer o que prometem, enquanto alguns afirmam que elas são boas nisso.

As ditas ciganas, devidamente paramentadas, ficam em frente às suas “tendas” aguardando quem quiser ler a sorte nas linhas da mão ou nas cartas. Enquanto aguardam os clientes, ficam conversando sobre qualquer coisa. Mas, no momento que alguém chega em uma das tendas para se informar, a cigana da outra tenda se afasta para não atrapalhar.

Então, chega uma senhora, conversa com uma das ciganas e entra na sua tenda para saber o que lhe reserva o futuro. A cigana lê a mão da senhora e joga as cartas. E, também usando a sua mediunidade, “enxerga” coisas não agradáveis que, segundo sua percepção, estariam para acontecer em seguida ou num tempo mais adiante. E, com a consciência tranquila, relata à senhora tudo o que prevê. Ela está convicta de que aquilo que percebe é verdadeiro e deve ser transmitido a quem procura saber o próprio futuro.

Porém, entre aquele que fala e aquele que ouve pode haver um abismo com relação ao entendimento das coisas. A senhora ficou muito contrariada com as previsões pessimistas que a cigana havia lhe passado. Ela paga a consulta com uma careta de descontentamento e sai furiosa da tenda.

Então, vendo que há outra cigana ao lado, conversa com ela e entra na sua tenda. Passados uns vinte minutos, a senhora sai dali radiante, satisfeita, e vê a cigana vizinha, com a qual havia se consultado há pouco, à porta da sua tenda. Limita-se a lhe lançar um olhar e um sorriso misto de ironia e de desprezo e se vai.

Quando a segunda cigana surge na porta da sua tenda, a primeira lhe pergunta o que havia acontecido para a senhora ter saído tão feliz.

─ Nada de mais. Apenas lhe disse o que ela precisava e queria ouvir.

─ Mas você não pode enganar as pessoas. Mesmo que elas queiram ser enganadas. Isso é desonesto.

─ Vamos analisar a questão. Você viu o que você viu. E relatou a ela. Ela me disse. Mas qual é a garantia que o que você viu é real, é o que vai acontecer de verdade?

─ Bem, não sei... Mas não posso enfeitar a situação e relatar à quem me procura o que eu não vejo.

─ Não se trata de enfeitar ou de mentir. Quem nos procura quer ouvir coisas boas. Ninguém procura uma cigana ou outro vidente para ouvir profecias de desgraças. Nós nos oferecemos para “ler a sorte”, não é? Então... Você acha que conseguiria algum cliente se, em vez disso, você se oferecesse para “ler o azar” das pessoas?

─ Mas isso é charlatanismo...

─ Será? O futuro é um livro em branco, pronto para ser escrito da forma como cada um puder. Se alguém lhe procura e você mesma escreve coisas no seu livro, estará atrapalhando ou impedindo que aquela pessoa escreva a sua própria história e conduza a sua vida como deveria. Nada no futuro é algo definitivo, que se possa assegurar que ocorrerá. Pelo contrário, há apenas possibilidades, probabilidades, que poderão acontecer ou não. Tudo dependerá das escolhas e das ações de cada um.

A primeira cigana fica pensando no que a outra lhe fala, mas não se convence.

─ Mas você a enganou com previsões falsas. Você mentiu para agradá-la.

─ De forma alguma. Eu apenas relatei a ela as melhores possibilidades que percebi nos seus caminhos e procurei orientá-la para que os percorresse da melhor forma possível. Eu também vi as possibilidades, as probabilidades, que você relatou a ela. Mas não passam disso: de meras possibilidades, que para acontecerem ou não, ou de uma forma ou de outra, dependerão apenas das escolhas dela. Então, não faz sentido colocar certezas que não existem na mente dos outros. Penso que o certo é orientar para que façam as melhores escolhas.

─ Talvez você tenha razão. Mas não sei, não. Ainda penso que eu tenha agido corretamente. Mesmo assim, acho que aquela senhora nunca mais irá me procurar.

─ Realmente! Você perdeu essa cliente. Não por ter mentido ou enganado, mas por ter lhe falado “verdades” desnecessárias. E que, se não acontecerem por ela ter feito as escolhas certas, ainda irão se transformar em mentiras no futuro. Ela nunca mais voltará a lhe procurar para ouvir as suas previsões ruins. Quanto às previsões que eu lhe fiz, se não ocorrerem a cliente voltará a mim para saber o que fez de errado para as boas coisas não terem acontecido. E, também, para ouvir novas boas previsões.

As duas ficam se olhando, como que buscando um equilíbrio entre o que estão debatendo, até que a segunda cigana toma a palavra para encerrar a questão.

─ Quando alguém consulta um vidente, ou procura qualquer recurso espiritual, não está em busca de fatos ou de certezas, mas de esperança. Fornecer um pouco de esperança é o melhor que nós podemos fazer a quem nos procura. Pense nisso. E boa sorte para você.